terça-feira, 27 de abril de 2010

São Paulo, 27 de abril de 2.010.



Amiga querida,



Reencontrar seu olhar hoje me inquietou novamente. Eu sei, e muito, por onde você está passando. E talvez só o saiba por ter tido, na hora em que as paredes da minha casa sumiram, uma amiga ao telefone. Nem sei se já contei a ela o que aquela ligação, naquela hora, me representou. Mas o que nos importa agora é que ela ligou. As paredes desmoronavam lentamente, uma a uma, mas restou nas mãos o telefone. Pra pedir um socorro, que fosse... Dali em diante meus olhos perderam o brilho. Lembro-me de ver dias de sol completamente cinzas. A janela fechada, a alma perdida, o coração fraco, a morte! É só assim que a gente renasce: morrendo. Mas morrer dá certo desespero, sabe? Então você nega e fica ali, feito cinza. Acho que é por isso que eu não gosto desta cor. Só que eu sou teimosa de dar medo e desistir é um conceito que eu tento diariamente incluir no meu repertório, mas a minha própria teimosia não permite. Fiquei lá estirada no escuro até que um dia, depois de muita chuva os dias de sol foram voltando, vagarosamente, a terem o devido brilho. E eu, depois de longo tempo abri uma fresta da janela para olhar. Desde este dia, venho reaprendendo a caminhar. Só que agora deixando pra trás pegadas legitimamente minhas. As pernas algumas vezes ainda se ressentem e cansam. Só que agora elas têm força suficiente para sentarem-se antes de cair.Talvez este seja, o motivo pelo qual eu tenha errado a porta ontem e dado de cara com você e tenha feito o que eu fiz. Eu posso e vou segurar a sua mão na escuridão até você conseguir abrir, pelo menos, uma fresta da janela novamente. Beijo grande.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

São Paulo, 26 de abril de 2.010.


Querida amiga,



Estou mandando esta carta para dizer-lhe algumas palavras.
Eu já chorei o choro que você chorou hoje.
Reconheci nos seus olhos a dor que já doeu em mim.
Por isso, se quiser, pode contar comigo.


Eu gosto muito de você e, mesmo que você não chame, estarei sempre por perto.
Não te perguntarei sobre nada. Sei como falar torna-se um ato de extremo esforço nesse momento.
Mas, ainda assim, estarei com os ouvidos sempre abertos para qualquer som emitido pela sua delicada voz.


Na hora do tombo, a gente dá com a cara no chão e chora porque acha que não vai saber ou conseguir levantar.
Depois a gente se conforma de já estar no nível mais baixo que nos é possível chegar, e relaxamos.
Ao relaxar descansamos.
Acabamos por ficar tão familiarizados com o chão que logo começamos a perceber que é possível se movimentar.
Com poucos movimentos fazemos deste mesmo chão, o primeiro degrau para se apoiar e levantar.
Uma vez de pé, reaprenderá a andar. O processo é lento e trabalhoso, mas aos poucos, irá se dando conta das pernas que têm e dos possíveis passos que poder dar.
Talvez eles sejam menores do que, de fato, os imaginava. Mesmo assim se sentirá estranhamente livre. E feliz!


Nós já somos companheiras de viagem, mesmo que nunca mais falemos sobre o assunto.


Estou por perto.

sábado, 24 de abril de 2010

O varal de Patrícia







Patrícia estendia roupa com apreciável zelo.
As marcas vividas naquelas roupas haviam se diluído na água que a máquina, sem pensar, escoou.
Restara-lhe na mão apenas peças limpas, sem marcas desnecessárias.
Abaixou o varal.
E colocou uma a uma todas as peças lavadas para secarem.
Da melhor maneira que lhe foi possível, planejou o arranjo cuidadoso de cada uma delas.
E, enquanto o fazia, regozijou-se no cheiro da novidade.
Ao terminar, levantou o varal e se foi.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

O banho de Patrícia





Foi só ao sair do banho, que acabara de lhe devolver a pele umidamente esterilizada, que Patrícia deu-se conta.
Deixara de tomar o banho da noite anterior. Mas não por um motivo qualquer.
Patrícia sentiu, sob o calor da água de seu banho, escoar o cheiro dele.
E, ao não tê-lo mais em si, deu-se conta.
Não havia, em momento algum, negado o banho.
Tinha sim, com propriedade, escolhido dormir no cheiro que até aqui a alimentara.
Esteve leve ao longo do dia: no corpo e na alma.
Leveza demais, que de tão leve quase deixou Patrícia encostar, com as pontas dos dedos, na alegria.
Amedrontou-se sem pudores.
Simples assim.
Depois da alegria tocada, quem viria ela a ser?

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Mesmo assim

(Mulher chorando - Pablo Picasso)



Mais um dia nasceu. E mais uma vez morri na noite que se escondeu para que ele aparecesse.
Com o peito ardendo em chamas decidi seguir mesmo assim.
Coloquei na mala o ouvido que me sobrou depois de tê-lo tirado o som da sua voz.
Respirei gotas de ar com o nariz que, por não ter mais seu cheiro, se desencantou.
Vesti a pele dolorida pelo ferimento do abraço que faltou.
Escolhi tirar os sapatos e seguir descalça com a única liberdade que restou.
Pés na terra. Uma espécie de tentativa de evitar a explosão.
Encolhida nos olhos encharcados  que não me deixaram ver o caminho.
Eu fui mesmo assim.


Só não se sabe pra onde...

?

Silêncio,






Medo...





Lacunas!





A dor.







Partida?





Se você for eu vou.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

A costureira

Era uma vez uma costureira.
Porque ela se fez costureira não se sabe a resposta.
Reside nesta pergunta o mistério que não sabemos se um dia veremos desvendado.
Toda e qualquer tentativa de resolução, até agora, não passou de mera suposição.
Para que se fez costureira, talvez um dia, ela alcance a resposta.
O fato é que ela costurava incessantemente. 
Mas só depois de um tempo adiantado, deu-se conta de costureira ser.
Disfarçou-se demasiadamente pelo caminho.
Quase se perdeu entre pontos inusitados, mas salvou-se a tempo por ter estado sempre presa a um único fio; a ânsia de ser.
No dia que finalmente pode revisitar-se sem reservas, conseguiu desembolar o novelo para fazer uso do imenso e indispensável fio que necessitava para a nova costura que pretendia fazer.
Desesperou-se ao se deparar com o trabalho de uma vida toda desfeito.
Fios soltos para todos os lados.
Chorou ao repassar os alinhavos, mas entregou-se por fim.
Entre lágrimas, deu-se conta da agulha que na mão lhe sobrara.
Num dia despretensioso, de um tempo com tempo, encontrou-se com mais duas artesãs.
Pôs- se de pé e fez seguir.
Embora fizessem uso de diferentes matérias primas, as três artesãs buscavam uma mesma obra de arte como produção: reinventar-se.
Foi assim, em boa companhia, que a costureira encorajou-se a recomeçar: pôs-se a costurar com os fios soltos sua nova invenção.
De tanto costurar, deu-se conta, um dia, que costureira era e que justamente aí, na simples descoberta, habitava aquilo que por tanto tempo ela procurava ser.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Oi Mari,



Estava com saudades e fiquei feliz em receber sua carta hoje.

Suas notícias soaram-me um tanto relaxante. Deixaram-me quentinha e confortável.

Só hoje, depois de ter lido sua carta, fui aos poucos me apropriando da dimensão das escolhas que a gente faz na vida.

Eu não tenho, nesse momento, como encontrar as palavras precisas para dizer quão contornável foi poder ler-me nas suas. Obrigada, de verdade.

De fato trabalho alimentando a alma, não vendendo-a, mas por continuar escolhendo a mesma escolha a cada novo dia, eu também vou aprendendo que para isso sempre há de se deixar as outras tantas escolhas que não foram feitas..

Acordo, e uma das primeiras coisas que me vêm à cabeça é qual a vida que eu quero pra mim.

Ainda que apenas intente idealizar essa questão, sou diretamente lançada ao que de fato, para mim, é na vida valoroso.

Nossa! Uma canseira danada... Esforços que não acabam mais. Viagem que eu não vejo o fim.

Esforço existencial mesmo sabe?

E eu também queria, além do que quero todos os dias, algumas das outras escolhas  que deixo de querer quando faço esta. Movimento intermitente de aprender “abrir mão” para simplesmente ser o que eu quero ter pra minha vida.

É disso que eu vivo amiga.

Uma escolha diária, muito trabalho e eu na recompensa.

Gosto do outro. Tanto, que pensei em tempos passados, que os valorizava mais do que a mim.

No caminho eu já aprendi que somente seremos em companhia do outro. Tanto quanto eu for o melhor de mim, o melhor do outro a ele oferecerei..

Percebi que em todas as instâncias somos nós, os únicos realmente capazes de nos fazermos “sendo” realizados.

Se o mundo parasse, meu último pensamento seria: apesar de não ter assistido ao filme que eu tanto queria, apesar de ter dado um super furo com a Pati hoje e apesar das muitas coisas que deixei por fazer, até hoje eu fui feliz!

Muito obrigada pela companhia durante a trajetória.

Fica claro pra mim o quanto a proximidade anda desligada da necessidade de estarmos fisicamente perto.

Bons dias de Mariana pra você.

Beijo grande,

Thais

sábado, 10 de abril de 2010

São Paulo, 9 de abril de 2010.



Meu querido diário,


Foi difícil levantar da cama hoje, sofri à beça.
No intervalo consciente entre o dormir e acordar matinal, o quentinho da cama e as vozes das crianças que já povoavam meus ouvidos, eu consegui tirar o cobertor.
Estava cansada, a semana foi exaustiva...
Frio.
Mas o que eu tinha pela frente era como um encontro com a força mais forte que há de mim em mim: meu trabalho. E nesse caso a expressão “ganha pão” não basta. Talvez “alimento da alma” lhe sirva melhor.
Caminhei a caminhada de todos os dias. Pensei pensamentos estranhos e infinitos.
Cheguei ao destino previsto na hora exata.
Encontrei-me com as crianças conhecidas para desbravarmos juntos um dia que nunca existiu.
Durante a nossa roda de conversa inicial, ao ouvi-los, lembrei-me da belíssima aula que tive sobre autonomia e lembrei-me, em seguida, o quanto amo trabalhar com educação, principalmente por ter assim a possibilidade de me reeducar a cada dia.
Retomei a concentração e voltei a ouvi-los. Estava tudo sendo dito e tudo o que eu precisava fazer era saber ouvir.
Fiz.
Tudo bem que o cobertor tivesse ficado pra trás. Não me faltou calor um minuto sequer.
Calor de vida, porque eu trabalho justamente na ponte por onde as crianças passam quando vão de suas famílias para o mundo.
Eu, de lá de cima  da ponte, olho de um lado e vejo o mundo que temos. Olho para o outro e vejo o mundo que eu quero.
Do lado do mundo que eu quero eu compartilho da vida com pessoas que podem fazer a diferença no mundo que temos. É pra lá que eu vou... Atrás do muro azul.
E a cada coisa que pretendo ensinar-lhes é necessário que eu aprenda ser.
Entende querido diário, que eu não posso parar?
É necessário que eu aprenda ser!
Elas aprendem o que eu ensino, mas compartilham do que eu sou.
Durante a travessia da ponte, passam um ano de suas vidas comigo.
Enquanto estou lá com elas, os vejo construírem seus próprios olhares, estabelecerem relações de confiança, experimentar-se enquanto pessoas, que ainda são pequenas, mas um dia crescerão.
Elas aprendem a subir na árvore debaixo dos meus olhos, aprendem a colocar os sapatos ao meu lado e depois de tanto eu perguntar se estão satisfeitas após o lanche, um dia as vejo levantar dizendo por elas mesmas que o estão.
Eu lhes ensino a levantar depois de cada tombo, lhes ensino a conversar para resolver os problemas e a confiar, lhes ensino sobre o respeito, mas não quando falo sobre ele e sim a cada instante que o pratico.
Depois elas descobrem que, do outro lado do muro azul, logo após cruzar a ponte há ainda um mundo inteiro a ser reinventado.
E é pra lá que elas vão. Para fora do muro azul...
Só que elas vão tendo passado pela ponte e, portanto por mim. Deixam-me, invariavelmente, melhor do que era antes de conhecê-las e pretendo, com a força da minha alma, que levem consigo a lembrança de terem estado com alguém que foi, com elas e para elas, o melhor que podia ser.
É assim, querido diário que eu começo todos os meus dias. Com a possibilidade de aprender tudo o que eu ainda não sei e vir a ser alguém melhor do que aquela que vi dormir na noite anterior.
Sobra-me pouco a mais para querer da vida!



quinta-feira, 8 de abril de 2010

Despreparo

Volpi, Composição com formas circulares.

Eu quero tempo de escrever, mas para isso preciso ter tempo para gestar.


Sim, lógico que sim. Eu quero gestar!


Por que ainda não o fiz?


Falta de espaço pra gerar e para gerar é imprescindível disponibilizar.


Claro que sim... Eu realizo o espaço.


E falta o quê?


Achar o tempo de partir em busca de mim.


Deixar de dar o meu tempo a você.

domingo, 4 de abril de 2010

Ela, mais uma vez.

O sonho (1932), Pablo Picasso


Agora não se tratava mais de somente um apreço pelas formas arredondadas.
Ela, definitivamente, as incorporara.
E tal ocorrência só era possibilidade viva àquelas que de fato eram mulheres.
E ela só podia ser mulher.
E estava entorpecida do próprio amor que carregava.
Pensou em se auto- acolher em algum lugar que fosse a origem.
Ela não encontrou. As origens são assim somente no momento em que dão.
Depois da origem vem a intersecção.
Imaginou-se contraída em forma de círculo.
Esquentou-se do próprio sangue.
Ela riu sozinha no momento que sucedeu ao desespero.
Esteve fora por alguns instantes e depois retomou.