domingo, 15 de março de 2009

eu leio assim

CATAR FEIJÃO
João Cabral de Melo Neto

Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

2.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo
obstrui a leitura flutuante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

MELO NETO, João Cabral. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

Proposta: Como você lê?


Ao receber a folha nas mãos rapidamente passei-lhe os olhos. A descida foi em branco, mas na volta fui fisgada pelo nome de João Cabral de Melo Neto.
“Hum, o texto deve ser bom” eu pensei ainda sem ter me dado conta de que mobilizar meus conhecimentos prévios ou até mesmo os pré conceitos sobre o assunto em questão talvez seja um dos primeiros passos de minha leitura.
Prossegui. Mas não em frente. Fiz uma espécie de resgate ao retornar ao título. Embora respeite a ordem natural de um texto quando o leio, muitas vezes eu também passeio por ele. É uma espécie de sobrevôo. O todo e as partes ao mesmo tempo.
Retomei a concentração e me pus a obedecer a tal ordem natural: de cima para baixo, da esquerda para a direita.
Não me preocupei com o entendimento. Aliás, não costumo me ocupar de entender totalmente o que leio em uma primeira leitura. Eu deixo o texto passear em mim. Todos entram pelos olhos, poucos chegam ao coração. Alguns param no estômago e outros se finalizam na razão.
Não sei o que é alguidar eu pensei em algum momento com a esperança de que mais adiante o todo explicasse as partes.
Ao me deparar com o ponto final que encerrava ali as palavras do autor me pus a ler novamente, mas desta vez algo novo brotava em mim.
As imagens foram ganhando contornos mais precisos. Eu continuava sem saber o que alguidar significava, mas já podia compreender seu sentido. Li o texto e me vi secretamente com os feijões nas mãos, da mesma maneira que agora tentava segurar as palavras nas ideias.
Imaginei. E pensando na imaginação entendi a leitura como ação, como algo ativo e vivo. O texto ganhou enfim a merecida vida que lhe cabia.

Um comentário:

Márcia Fortunato disse...

Thais, ficou linda sua descrição da leitura. Na verdade você não se preocupou em descrever essa leitura apenas, mas a leitura. E seu texto ficou muito bonito, poético. Gostei. Agora queria saber se, ao escrever, as escolhas que faz do "como dizer" traduzem o que você observou. Ou seja, as escolhas ocorrem em função da beleza ou da precisão? Como você negocia isso? Entende o que digo?
Beijos, Márcia.